"Tende mão, senhores, tende mão, que não é razão tomardes vingança dos agravos que o amor nos faz. E adverti que o amor e a guerra são uma mesma coisa, e assim como na guerra é coisa lícita e costumada usar de ardis e estratagemas para vencer o inimigo, assim nas contendas e competições amorosas se têm por bons os embustes e enredos feitos para alcançar o fim desejado, como não sejam em menoscabo e desonra da coisa amada. Quitéria era de Basílio, e Basílio de Quitéria, por justa e favorável disposição dos céus. Camacho é rico e poderá comprar seu gosto quando, onde e como quiser. Basílio só tem esta ovelha e não lha tirará ninguém, por poderoso que seja, pois os dois que Deus junta o homem não pode separar, e quem o tentar, antes terá de passar pela ponta desta lança." (Don Quixote; CERVANTES, 2013, p. 256)
A obra de Cervantes Don Quixote de la Mancha, desde sua publicação no século XVI, se tornou um dos pilares da cultura ocidental, no que tange não só quanto à qualidade literária, como também por sua abordagem social e política. Ao longo dos séculos XVII, XVIII e XIX, serviu de inspiração, para peças teatrais, óperas e ballets. O caminho percorrido pela temática na cena até chegar à mente criativa de Marius Petipa, foi praticamente de três séculos, o que nos faz pensar na potência deste romance e na relevância de sua temática para compreender as fronteiras entre a transição do homem velho e a modernidade.
O Editor das partituras de Minkus, Robert Ignatius Letellier, nos aponta o fato do aumento no século XIX, da popularidade da obra de Cervantes:
“A primeira versão em russo foi de Charles Didelot (dois atos, São Petersburgo, 1808), seguida por uma versão em inglês de James Harvey D'Egville (1809), uma versão em alemão de Paul Taglioni (irmão da bailarina Marie Taglioni) (Berlim. 1839), e uma versão italiana de seu tio Salvatore Taglioni (Teatro Régio, Torino na temporada de 1843-4). Todas essas versões do ballet foram baseadas nos primeiros episódios da história de Cervantes, embora variando no estilo e no material que eles escolheram incluir. O primeiro uso bem-sucedido dos episódios mais cômicos, girando em torno de Quitéria (Kitri), Basílio e Camacho (Gamache), foi na Opera de Paris (1801) com coreografia de Louis Milon. Intitulado Les Noces de Ganache, o papel de Basílio foi dançado por August Vestris. O cenário desta produção tornou-se popular e foi levado para a Dinamarca por August Bournonville para seu 3 ato Don Quixote no Casamento de Comacho (Copenhagen, 1837). A trilha foi arranjada por Otto Zinck a partir de uma miscelânea de músicas de Gioacchino Rossini, Étienne Mehul, Gaspare Spontini e Jean Schneitzhoeffer. O libreto de Milon também foi usado por Bernardo Vestris para sua produção de 1844-5 no La Scala, e daí se tornou a inspiração para a versão de Marius Petipa (1819-1910) para Moscou.” (LETELLIER, 2010, p.2)
No início do século XIX a temática explorada pelos mestres de ballet dos teatros oficiais e privados, foi O Casamento de Camacho, contido nos capítulos 19, 20 e 21 do livro dois de Cervantes, isso porque o discurso acerca das questões de classe e da justiça, ainda estavam fervilhando na França napoleônica. O ballet de Louis Milon, Le noces de Gamache (música François-Charles Lefebvre) foi laureada de grande sucesso devido a leveza em que o tema era posto, e refletia a forma apaziguadora em que a burguesia tentava abordar as diferenças de classe. Sendo assim, a obra foi representada pela primeira vez na Ópera de Paris em 18 de janeiro de 1801 por Sophie Chevigny (Quitéria), Auguste Vestris (Basílio), Jean-Pierre Aumer (Don Quixote), Charles Beaupré (Sancho Panza) e Jacques Lebel (Gamache). Passada a euforia do governo de Napoleão e suas investidas megalomaníacas, o resultado da instabilidade política se refletiu na produção teatral da década de 1820, e ballets com o Le noces de Gamache foram deixados de ser apresentados nos teatros oficiais, dando espaço para uma gama de peças orientalistas. A obra só retorna aos palcos da Opera de Paris em 1841 com Lucien Petipa.
Uma outra tendência que parece atrair os gostos e olhares da sociedade ocidentais do século XIX é a fuga do estilo que favorece o herói trágico, e o interesse pelo Herói romanesco. Se o Herói trágico é o representante máximo de sua sociedade, o romanesco é aquele que está em descompasso com o mundo social, cultural que habita. E isso casa muito com o aspecto político europeu do século XIX, onde uma antiga ordem era finalmente quebrada, mas a fixação de um novo modelo colocava, e até mesmo dividia as visões e práticas ideológicas, resultando em uma instabilidade de modelo político a ser implementado. A Rússia representava esse descompasso com a ordem burguesa republicana da Europa, e é lá que coreógrafos e primas-ballerinas, elegeram como um reduto de continuidade do decadente ballet romântico francês. Neste sentido, coreógrafos franceses deram continuidade a obras que não eram mais apreciadas pela elite parisiense, perpetuando ballets que perdiam o significado no cenário político, cultural no Ocidente. Le Noces de Gamache foi apresentado em 1834 por Alexis Blache para o Teatro Bolshoi Kamenny em São Petersburgo, e no ano seguinte por Félicité Hullin-Sor para o Teatro Bolshoi, Moscou, dando continuidade ao caminho da temática até se fixar na obra de Marius Petipa.
De Milon a Bournonville, passando por dois coreógrafos da família Taglioni, o tema sempre foi explorado a partir do capítulo 20 do segundo livro da obra de Cervantes. O aspecto cômico das Bodas de Camacho, e a farsa do suicídio de Basílio, chamavam a atenção de coreógrafos, tornando esses personagens famosos nos meios do Ballet. Por isso mesmo, não é de se estranhar que Marius Petipa tivesse utilizado desta inspiração para uma obra que estranhamente não fala muito do protagonista de Cervantes.
Jules Perrot, Arthur Saint-Leon, e por fim, Marius Petipa, reinaram, um após o outro, na ordem hierárquica russa. Lá encontraram uma corte aos moldes autocráticos e financiamento abundante para a manutenção das permanências do ballet, e para sua ampliação ao gosto do tzarismo. Petipa já há um tempo longo como segundo mestre de ballet, almejava a oportunidade de coreografar algo que espelhasse sua experiência na Espanha. E em 1869 surge a possibilidade de arquitetar um ballet sobre a consagrada obra de Cervantes, Don Quixote. Como principal mestre de ballet do Teatro Imperial Russo, Marius Petipa fora instruído pela diretoria, no ano de 1868 a produzir uma nova obra grandiosa para a elite de Moscou. Para tanto, o enredo baseado na obra de Milon, Le noces de Gamache, foi sugerido e aceito por Petipa, que já nutria uma admiração pelos temas espanhóis.
O Don Quixote de Petipa foi produzido para o Teatro Bolshoi de Moscou em quatro atos e oito cenas, sendo um grande sucesso devido também ao caráter festivo e descontraído da obra. O Público de Moscou, admirava encenações com a temática voltadas para o folclore, o que explica a predileção de encomendar uma obra de viés mais cômico e popular, para um mestre como Petipa. Don Quixote, foi o primeiro ballet em que Marius Petipa trabalhou com o músico Ludiwg Minkus. De início a obra seria composta por Cesare Pugni, no entanto, devido a antigos problemas do compositor com alto consumo de bebidas alcoólicas e episódios de surtos depressivos - Saint-Léon e Marius Petipa estavam ficando extremamente frustrados com Pugni e então, começaram a recorrer a Minkus - a direção musical do teatro imperial ficou nas mãos de Minkus[1]. A obra que deu credibilidade a Minkus dentro do universo hierárquico russo, foi Don Quixote, que já em sua estreia em 1869 para a temporada do Bolshoi em Moscou, foi um sucesso não só coreográfico, como também, musical. Um ano após a nomeação de Minkus para o cargo de maestro, regente e compositor de ballets, Marius Petipa assume a Direção Geral como Premier Maître de Ballet do Teatro Imperial.
A predileção de Petipa por sua obra Don Quixote, fez com que ele remontasse em uma nova versão em São Petersburgo. Para a produção, que estreou em 1871, Minkus expandiu sua partitura. O ballet foi ampliado em cinco atos e onze cenas e diversas mudanças foram feitas no libreto, como por exemplo, a encenação de Kitri e Dulcinea feitos pela mesma bailarina a modificação do viés da cena do suicídio simulado de Basílio, pois na primeira versão era uma pantomima cômica, e na versão de 1871 se transforma em uma cena trágica na qual Kitri ameaça se matar em vez de se casar com Camacho. Outra modificação foi na ordem do enredo e o surgimento de novos personagens. O falso suicídio que acontecia após a luta de Don Quixote com o moinho de vento, passou a ser encenado antes, e o cenário da taberna foi substituído pelo Castelo de um Duque e uma Duquesa, resultando em mais um ato, o Quinto.
Devido ao falecimento de Cesare Pugni em janeiro de 1870, o posto de compositor de ballet ficou vago. Com o sucesso de sua trilha para Don Quixote, Minkus foi nomeado Compositor dos Teatros Imperiais de São Petersburgo, o que marcou o início de uma longa e produtiva colaboração entre ele e Petipa. Eles iriam produzir La Camargo em 1872, Papillon de Jacques Offenbach em 1874, Les Brigands em 1875, Les Aventures de Pélée em 1876, A Midsummer Night's Dream em 1876 e, finalmente, La Bayadère em 1877, que viria a ser a obra mais duradoura e bem preservada de Petipa e Minkus.
Ao término do ballet Don Quixote retorna a sua casa, cansado e deprimido esperando pela morte. A versão para o Teatro Imperial de São Petersburgo trazia consigo a seriedade que a “tradição”, o ritual de um teatro da corte requisitava, e por isso mesmo, Petipa operou essas modificações no tom da obra. Dentro desta as coreografias que foram mantidas perderam seu caráter folclórico, resultando num enxerto de passos clássicos e refinamento das danças grupais e seus personagens. O sentimento de Don Quixote por Kitri, também se modifica, passando de uma proteção para um amor platônico. Ele a confunde com Dulcinéia, e Kitri aparece como a ilusão de Don Quixote na cena do Sonho. O caráter das imagens fantásticas das alucinações de Don Quixote, tornam-se na versão de 1871, um sonho com dríades, cupido remontando ao tema do baile de corte narrado no livro de Cervantes, modificando assim, as cenas de batalhas com monstros imaginários, sobrando espaço para somente a ilusão do moinho de ventos.
Ao longo dos anos que se se passam da remontagem de 1871 até o fim do século XIX, é essa obra refinada e transformada em drama que permanece, se distanciando muito das versões alegres e cheias de momentos cômicos que apreciamos na atualidade. Alguns modismos foram sendo colocados a cada reapresentação em São Petersburgo, como por exemplo: O Grand Pas des toreadors que aparece somente na versão de 1882, onde os toureadores são encenados por bailarinas en travesti, uma prática típica dos divertimentos da elite burguesa do período.
Então de onde vem esta energia de alegria, comédia, e aventuras que nos chegam nas reapresentações de Don Quixote? Em algum momento a versão moscovita de Petipa foi trazida ao cenário dos grandes espetáculos? A resposta está de fato em Moscou, o que muda é o coreógrafo que dirigiu a retomada do espírito festivo da primeira versão de Petipa. A responsabilidade de reviver Don Quixote, para o Teatro Bolshoi em 1900, foi depositada nas mãos de Alexander Gorsky ex-aluno de Petipa, que assumiu um lugar de destaque como mestre principal em Moscou.
A versão de Gorsky foi aclamada pelo público moscovita o que resultou no interesse da nova direção do Teatro Mariinsky pela nova abordagem de Don Quixote. Sendo assim, em 1902, o diretor dos Teatros Imperiais, Vladimir Teliakovsky, convidou Gorsky para refazer uma versão atualizada de Dom Quixote em São Petersburgo. Este fato, causou uma grande confusão e disputa pela autoria da obra, estética, estilo. O pesquisador de ballet Tim Scholl explicita as divergências e conflitos que este convite resultou:
“Na tentativa de alinhar o balé com os últimos desenvolvimentos dos teatros dramáticos de Moscou, Gorsky e seus desenhistas abandonaram essa característica essencial do grande balé. Os escritores de dança de Petersburgo, ferrenhos defensores da tradição acadêmica, ficaram visivelmente ofendidos com as impropriedades da produção. O balé de Gorsky, com seu movimento massivo incipiente, representou um primeiro passo na subversão da academia de dança clássica. Embora a danse d'école seja geralmente considerada um vocabulário de movimento, essas citações demonstram que, na Rússia, na virada do século, a academia de balé também assumia um vocabulário proscrito de encenação e apresentação de movimento. (...) O Dom Quixote de Gorsky, representou uma tentativa de desconvencionalizar o figurino e a cenografia do balé e misturar os elementos da produção em uma unidade mais ou menos harmoniosa. ” (SCHOLL, p.46-48)
As modificações feitas por Gorsky, ultrapassavam a reformulação de cenografia e figurinos, se estendeu também pela estrutura musical e narrativa. A alegria e o aspecto cômico foram a base do tom da remontagem, e para tanto a trilha de Minkus foi cortada e complementada com nova música do compositor Anton Simon. O próprio Marius Petipa ficou indignado com o avivamento e quando foi a um ensaio geral, ficou tão furioso com as mudanças que Gorsky havia feito em seu amado balé que gritou: “Alguém dirá àquele jovem que ainda não morri!” A postura de Petipa era exatamente a mesma do seleto público do Mariinsky, e, portanto, a versão de Gorsky não permaneceu por muito tempo no repertório de São Petersburgo, sendo retomado somente em 1910. Como a obra tinha sido boicotada pelos balletomanes e só se fixou no repertório do Teatro Imperial após a morte de Marius Petipa, a versão que permaneceu na Rússia soviética foi a que Petipa desprezava.
A Revolução de 1917 com toda sua reestruturação das instituições, selecionou a permanência ou não de muitas obras do antigo repertório imperial, Don Quixote reformulado por Gorsky foi um destes ballets que permaneceram. Em 1923, o coreógrafo Fyodor Lopukhov encenou Don Quixote em Leningrado, que incluía um “Fandango” do compositor tcheco Eduard Nápravník. As versões que se seguiram a de Lopukhov foram baseadas nas anotações de Gorsky mas creditadas a Petipa, passaram pelas mãos de muitos mestres soviéticos até que em 1940 Rostislav Zakharov encenou a versão mais adequada a estética do realismo socialista para o Teatro Bolshoi que incluiu música nova de Vassily Soloviev-Sedoy.
O Bolshoi, após a revolução se tornou o teatro mais importante para a URSS, e seu repertório era considerado o oficial e adotado pelas outras companhias russas. Por isso mesmo, em 1946 Pyotr Gusev remontou a versão moscovita de Dom Quixote no Teatro com o libreto original modificado por Yuri Slonimsky, novas danças de Nina Anisimova para a cena da taverna e a decoração restaurada a partir dos designs originais da versão de Gorsky. Quem deu sucesso e brilho para a Kitri soviética foi Maya Plisetskaya
traçando um perfil de alegria energia e uma pitada de deboche à protagonista. A partir das interpretações de Maya, se traçou as características que hoje atribuímos a Kitri. Esta produção é a utilizada atualmente pelo Mariinsky.
" Eles não me deram absolutamente nada. Mas eles me deram Kitri sem qualquer burocracia. Eu me joguei no trabalho. Elena Ilyushchenko foi a treinadora do ensaio (...). Língua afiada, sempre cabeça fria e meticulosa. Ela geralmente usava algo de bolinhas ou xadrez. Nos ensaios, Elena Mikhailovna me chamou de "uma força da natureza". Ela rastreou cuidadosamente como o texto do coreógrafo foi executado e puniu a improvisação com raiva justificada. Meu parceiro era Yuri Kondratov. A programação do teatro saía três vezes por mês e cobria dez dias. Fiquei indescritivelmente emocionada ao ver meu nome ao lado do papel de Kitri em Dom Quixote em 10 de março de 1950." (PLISETSKAYA, 1994, p.119)
Já no ocidente o caminho para o ballet Don Quixote se materializou por meio das inúmeras turnês realizadas pela companhia Anna Pavlova, e especialmente em 1924, quando ela dançou em uma abreviação em dois atos do renascimento de Gorsky na Royal Opera House em Londres. A partir de então, outras empresas ocidentais passaram a reproduzir trechos do ballet em seu repertório, fazendo com que Don Quixote fosse reconhecido fora do contexto soviético. No entanto, o número de apresentações da obra aumentou muito com a deserção de profissionais do ballet soviético a partir da década de 1960.
É o caso das versões famosas de Rudolph Nureyev e Mikhail Baryshnikov que hoje devido ao domínio imperialista estadunidense, por meio do amplo financiamento da indústria cultural, nos chega como as mais familiares versões de Don Quixote. Entretanto, mesmo diante de tantas modificações ao longo do tempo, e de contextos, a aura da obra e a base coreográfica de Marius Petipa sobrevivem.
Natalia Samarino é historiadora da dança, bacharel e licenciada pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais – PUC Minas, bailarina profissional e diretora artística do Pas de Quatre Centro de Dança e autora do livro Histórias do Ballet.
Bravo, Natalia. Uma cuidadosa e excelente análise de um dos mais populares clássicos do repertório internacional. Os detalhes são preciosos e a leitura é muito agradável e bem redigida. Adorei!! Grande abraço!